Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a resistência antimicrobiana (RAM) uma das maiores ameaças à saúde pública do século XXI. Em essência, essa resistência corresponde à capacidade de microrganismos — em especial bactérias — de sobreviver e proliferar mesmo na presença de medicamentos que, anteriormente, eram eficazes contra eles. Nesse contexto, estima-se que, caso medidas eficazes não sejam adotadas, a resistência antimicrobiana possa causar mais de 39 milhões de mortes até 2050, segundo alerta da Fiocruz em publicação recente sobre superbactérias.
Diante desse cenário, pesquisadores têm investido em abordagens inovadoras para descobrir e desenvolver novos agentes antimicrobianos. Entre essas alternativas, destacam-se duas estratégias promissoras: o uso de bacteriófagos e a aplicação de inteligência artificial (IA).
Estratégias inovadoras
Bacteriófagos: Vírus que combatem bactérias
Os bacteriófagos, ou fagos, são vírus que infectam e destroem bactérias de maneira altamente específica. Descobertos há mais de um século, esses agentes microscópicos têm ganhado cada vez mais atenção como uma alternativa promissora aos antibióticos tradicionais. Pesquisadores estudam seu uso terapêutico há muito tempo, mas só recentemente reconheceram seu potencial de forma mais ampla, especialmente diante do aumento da resistência bacteriana aos medicamentos convencionais.
Precisão no combate às bactérias
Uma das principais vantagens dos bacteriófagos está na sua especificidade. De fato, eles atacam exclusivamente as bactérias-alvo, preservando as espécies benéficas, e, além disso, adaptam-se rapidamente ao ambiente, o que reduz significativamente o risco de resistência — um diferencial marcante em relação aos antibióticos convencionais.
Além dessa característica, destaca-se também a ampla diversidade de aplicações dos bacteriófagos. Eles tratam infecções hospitalares causadas por bactérias multirresistentes e, ao mesmo tempo, descontaminam alimentos e superfícies sem utilizar produtos químicos agressivos. Por conseguinte, em diferentes áreas, como a medicina e a indústria alimentícia, o uso de bacteriófagos tem se consolidado como uma ferramenta não apenas valiosa, mas também altamente eficaz.
Desfios a serem enfrentados
No entanto, apesar das grandes promessas, ainda existem desafios significativos para a adoção ampla dos bacteriófagos na medicina. Cientistas e autoridades regulatórias precisam resolver problemas como a estabilidade dos vírus, a regulamentação rigorosa e a produção em larga escala antes de permitir seu uso amplo. Por isso, mesmo com um futuro promissor, pesquisadores precisam superar essas barreiras para usar os bacteriófagos com segurança e eficácia em tratamentos médicos no mundo todo.
Inteligência artificial acelerando a descoberta de antibióticos
A inteligência artificial (IA) tem se mostrado uma ferramenta poderosa na descoberta de novos antibióticos, especialmente diante da crescente ameaça da resistência antimicrobiana. Um exemplo notável foi publicado na revista Cell, em um estudo liderado pelo biólogo computacional Luis Pedro Coelho. Utilizando aprendizado de máquina, os pesquisadores analisaram bilhões de sequências proteicas de microrganismos encontrados no solo, nos oceanos e no trato intestinal de humanos e animais. O algoritmo previu 863.498 peptídeos antimicrobianos, e a ciência nunca havia descrito mais de 90% deles. Os pesquisadores sintetizaram e testaram 100 desses peptídeos em laboratório, e 79 conseguiram romper membranas bacterianas. Entre eles, 63 foram eficazes contra bactérias resistentes como Escherichia coli e Staphylococcus aureus. O avanço acelera a triagem de compostos promissores no combate às superbactérias, poupando tempo e recursos no desenvolvimento de medicamentos.
Novo antibiótico descoberto pela Universidade McMaster
Outro caso de destaque surgiu na Universidade McMaster, no Canadá, onde, em colaboração com o MIT, pesquisadores utilizaram inteligência artificial para identificar um novo antibiótico chamado abaucin. Primeiramente, a equipe treinou um modelo de IA com dados de compostos químicos já conhecidos. Em seguida, em apenas 1h30, o sistema analisou 6.680 moléculas e, como resultado, selecionou 240 para testes laboratoriais. Dentre essas, o abaucin se destacou devido à sua eficácia contra a Acinetobacter baumannii, uma das três superbactérias mais perigosas, conforme aponta a OMS. Além disso, o antibiótico demonstrou ser altamente específico, uma vez que ataca exclusivamente essa bactéria sem afetar outras espécies benéficas. Por consequência, isso pode reduzir os efeitos colaterais e dificultar o surgimento de resistência bacteriana. Por fim, os resultados dessa descoberta foram publicados na revista científica Nature Chemical Biology .
Esses avanços mostram como a IA está transformando a pesquisa biomédica, permitindo não apenas a triagem rápida de compostos, mas também a previsão de toxicidade e eficácia antes mesmo da síntese laboratorial. Isso representa uma economia significativa de tempo e recursos, além de abrir novas possibilidades para o desenvolvimento de antibióticos mais seguros e eficazes.
Em conclusão
O uso de bacteriófagos e inteligência artificial representa uma virada de chave na luta contra a resistência antimicrobiana. Enquanto os fagos oferecem uma abordagem biológica personalizada, a IA acelera a descoberta de moléculas promissoras com precisão inédita. Ambas as estratégias, embora ainda enfrentem desafios, têm o potencial de redefinir o futuro da terapêutica antimicrobiana.
Referências
Nature Chemical Biology (2023). Antibiotic identified by AI. Disponível em: Nature Chemical Biology
Cell. Discovery of antimicrobial peptides in the global microbiome with machine learning. Disponível em: Cell